O poema que se segue "Sancta Iria - Chacara", a padroeira de Tomar, é da autoria de António Feliciano de Castillo e surge num livro de 1846, de nome Exacavações Poeticas, com publicação no Rio de Janeiro.
O autor revela que o poema foi escrito na Quinta da Azenha Velha junto a Carnide, a 28 de Maio de 1839.
Tocam sinos em Nabancia,
Tocam sinos á porfia;
É por S. Pedro e S. Paulo,
Que se-festeja o seo dia.
Á Matriz são vindas freiras,
Quantas em S. Bento havia:
Todo o altar um ramalhete ;
O povo galas vestia.
Mas nem no altar se-inlevava,
Nem no poyo se-revia
Britaldo, filho mancebo
Do que em Nabancia regía:
Curiosidade o lá trouxe
Do muito que ouviu de Iria;
Que nem ha freira tão linda,
Nem sancta de egual valia.
Logo em a-vendo foi cego,
De quanto o ceo n’ella ria;
Iria, é toda da gloria,
Britaldo, todo d'Iria.
Desde aquella negra hora
Perdeo comer e alegria;
Sonha as noites accordado,
Não cuida em tal todo o dia.
Promette amor e segredo,
Promette ouro e pedraria,
A propria vida promette
Se ella aceitar-lh'a queria.
Marido quer a donzella,
Porém de mór jerarquia;
Quer delicias e riquezas,
Mas nào ouro, e pedraria.
Quer Jesu por seo esposo,
Por sogra a virgem Maria,
O ceo por palacio e hortas,
Os Anjos por companhia;
Por delicias basta a pomba
Do Paraclito seo guia,
Que entre as flores das virtudes
N'alma lhe-arrulha alegria.
Gastado dos vãos desejos
Morrer Britaldo se-via:
Geme seo pae Castinaldo,
Chora sua máe Cassía.
Todo o povo anda pasmado,
Que é dó ver tal loucanía,
Annos tāo verdes, murchados,
Pender para a terra fria.
Chegou a nova ao mosteiro;
Lastimou-se a boa Iria :
Deu-lhe licenca a abbadessa
De ir ver a quem se-morria.
Introu manso ao pé do infermo,
Que nada ver não queria,
E disse-lhe: « ¡Sus Britaldo »
E elle accordou e tremia.
Reconhecendo ser ella,
Recobrou nova alegria:
Dos olhos, faces e bocca
Logo a morte sacudia;
Ambos os bragos algava
Como d'antes náo sohia:
E por julga-la rendida
Como que foram serpentes
Ella os bragos lhe-fugia:
E contra o fogo da carne
Sanctas razóes lhe-dizia.
E vendo que ás razóes sanctas
O doente se-rendia,
Foi pór-lhe as mâos na cabeça,
E disse com fé mui pia:
« Nome do Padre e do Filho
« E do Esprito que alumia,
« Accuda-te o anjo da guarda,
« Salve-te a virgem Maria. »
Palavras máo eram dictas,
Britaldo mui são se-erguia,
E vendo-a que se-apartava,
«Da morte, sim, me-has livrado,
« Não do amor de que morria;
« Não sei se é favor, se é damno
« O que me ora has feito, Iria. »
« Masqualquer que eme tu fosses,
Nunca te eu mal quereria,
« Deus te-accrescente a ventura
« Com toda a que me-devia. »
« Eu que te-chore no mundo,
« Onde tão solto me-ria ;
« Tu, folga sem mim no ermo,
« Sem homem, hora, nem dia. »
«Que se jámais cá me-soa
Amor terrestre de Iria,
Qual a vida que me has dado,
« Adeus e porque vás certa
« Que ninguem te-livraria,
Por Deus te-juro isto mesmo,
« E pela virgem Maria ! »
Mal era fin da uma guerra,
Outra guerra se-accendia
Contra a limpa castidade
D'aquella formosa Iria.
D’entra as rosas d'annos verdes
Viu amor que a não rendia:
Foi entre cás emboscar-se,
Que não ha maior falsía.
Em montes de sanctidade,
Onde se ella mais confia,
Por entre as fontes da graga
Lhe-armou sua bateria.
Um monge, dicto Remigio,
A confessa-la sohia,
Varão d'an nos e virtudes,
O mór que em monges havia.
Namorou-o a formosura
Dalma que nua lhe-via;
Votou perde-la e perder-se
Quem lhe sempre fóra guia.
Pasmou Iria atterrada
De tão estran ha ousadia;
Mas logo com gräo despejo
Suas tencóes rebatia.
Como que alfim cae na conta,
O monge perdào pedia;
E com mores penitencias
Nova malda de incobria.
As calidades das hervas
Todas elle as-con hecia,
Que umas sáo para saude
Outras de grä tyrannia.
Como veio á meia noite,
Da sua cova sahia ;
Como a meia noite dava,
Hervas no monte colhia.
Colhidas que teve as hervas,
Suas folhas espremia;
Toda a terra era calada ,
O rio triste corria.
Mlixturava sumo verde
Com palavras que sabia;
Com seo bafo pegonhento
O sumo se-denegria.
Nen hum anjo ousava olha-lo;
Nen huma estrella luzia:
Pöe Remigio olhos de fogo
No vaso.... e o vaso fervia.
D'aquella infernal peconha
Temp'rou a mesa d'Iria:
Iria estava innocente .
Näo suppunha mal, comia.
Comidas que teve as hervas,
Logo o ventre lhe-crescia,
Como foi crescendo o ventre
Logo o seio se-lhe-inchia.
O parecer do sembrante
De panno se-lhe-cobria;
Mostras de dona pejada
Nenhuma lhe-fallescia.
Todo o convento se-espanta,
A-despreza e a-injuría,
Toda a terra de Nabancia
Ri da sua hypocrisia.
A triste nào se-defende
Nem defender-se podia;
Remigio a—amaldicoava,
Britaldo cm furias ardia.
Tudo era contra a coitada ;
Nem o ceo não lhe-acudia:
Chorem leóes, chorem ursos,
Chorem tanta barbaria.
Foi Britaldo ter, a occultas ,
Com um que na terra havia .
Acostumado a alugar-se
Em qualquer malfeitoria.
« Ora, sus Banão lhe-disse:
« Boa nova eu te-daria,
« Que houveras tu prata e ouro
« Se a ferro morresse Iria. »
Depois de cuidar um pouco,
Banão assim respondia:
« Fizera-o eu por dar gosto
« Só a tua sen horia.
« Quantas monjas tem S. Bento,
« Quantas eu te—mataria:
« Traze ora o que prometteste
« Que ella morta, eu posto em via. »
Recebido o ouro e a prata
Á facanha se-partia:
Soube em que parte da cérca
Aso de a-colher teria.
Por entre umas matas densas,
Por-li o Nabão corria
Logar mui feito a tristuras,
Por brenhas e penedia.
Nas horas mortas da noite,
Quando do córo sahia,
Alli vinha ajoelhada
Chorar mais resas Iria.
N’aquellas silvestres lapas
Logo Banão se escondia;
Nem vento não respirava,
A lua n agua tremia.
Bem poderam piar mochos,
Só um rouxinol se-ouvia,
Ao som do murmurio fresco.
Das pedras entre a agua fria.
Banão, por livrar do somno.
Que no esperar lhe-crescia,
N'uma pedra, manso e manso.
A afiada espada afia.
Detem-se, que ouviu passadas;
Surge, olha em redor, espia....
Quando n'uma lagea bronca
Vé de joelhos Iria.
Dava-lhe a lua no rosto,
Como estrella resplendia;
E apertando as mâos algadas
Estes prantos proferia: —
«
Jesu, esposo d'esta alma,
« O” sancta virgem Maria,
« O” celestes potestades,
« O”anjo, meo casto guia.
« Já nada por mim vos-pego,
« Que eu nada vos-merecia,
« Mas que não se perca a fama
« Das monjas com quem vivia.
« Tirai do escandalo o povo,
« E o convento da agonia,
« E eu que morra...» Eis mão de ferro
Que a garganta lhe-tolhia.
E eis que vibrada no ouvido
Esta palavra rangia:
«Britaldo, agora te-mata,
«Britaldo, ¿ intendes, Iria?
E logo um tinir de ferro,
Uma espada que lusia,
A garganta atravessada,
O corpo em terra batia.
¡
O sangue que borbutava
E um lume que aos ceos subia:
E em roda d'elle mil anjos
Com celeste melodia!
O corpo da virgem martyr
Lá vaina corrente fria
Nu dos habitos sagrados
Que desde a infancia trazia.
Ramo de lirios e rosas,
Que aboiava, parecia,
Do Nabáo tomou-a o Zézere
Com elle ao Tejo descia.
Assim veiu navegando
N’aquella agua corredia,
Aquella alva barca humana
Que serafins traz por guia.
De sangue vai purpurada
Por mais nobre galhardia,
Dado aos ventos o cabello
Que era as vellas que trazia.
Por onde quer que passava
Tudo ao longe recendia;
Té que veiu aos pés d'um monte
Que juncto a Escalabi havia;
E alli, onde um bom remanso
O Tejo fundo fazia,
Foi sepultada nas aguas
Perla de tanta valia.
Todos os anjos e archanjos
Da celeste jerarchia,
No fundo d'aquellas aguas
Trabalharam todo um dia.
Lavraram-lhe un moimento
De pedra mui luzedia;
Depois cantaram-lhe obzequias
De estremada melodia.
E antes que outra vez tornassem
Para a eternal monarchia,
Co”as conchinhas de mil córes,
E o ouro que o Tejo cria,
Sobre a campa lhe-intalharam
Um letreiro, que dizia:
« Livre da terra, aqui poisa
« A virgen mui sancta Iria. »
Sagrada a véa do Tejo
Ficou desde aquelle dia. -
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