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sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Thomar (1905-1907) - Descrita e Despida por Alberto Pimentel

EIS OUTRO TESOURO sobre Thomar antiga.

Publicado em 1908 e resultante de uma viagem entre 1905 e 1907, tem nele ilustrações nabantinas e parece surgir numa das fotografias o Dr. Vieira Guimarães que acompanhou o viajante em parte do passeio.

Alberto Pimentel (1849-!925) escritor portuense, no seu relato permite imortalizar o espaço e a gente de Thomar. Obra A Extremadura Portugueza - Parte II (Ribatejo) de 1908.

Aqui fica o Capítulo:

THOMAR (1905-1907)


Quatro estações de caminho de ferro dão serventia á cidade de Thomar: Payalvo, Chão de Maçãs, Entroncamento e Barquinha. Mas, na hnha do norte, a estação mais procurada é a de Payalvo, que dista de Thomar 8 kilometros, e onde o viajante tem a certeza de encontrar conducção em diligencia, a 20d réis por logar.Ha também facilidade em obter ali um transporte mais com- modo, coupé, mylord ou victoria, medeante prévio aviso á Companhia Viação Thomarense, pelo preço de I$200 réis. Esta Companhia organisou um excellente serviço de trens, que faz honra á cidade de Thomar.
 A estação de Payalvo dista um kilometro da povoação que lhe deu nome, a qual antigamente foi villa, em cuja praça ainda ha pouco existia o pelourinho e a casa da camará. A estrada, da estação á cidade, é árida, muito accidcntada, immensamente monótona. Oliveiras, algumas muito corpulentas, e piteiras empoadas desfilam a um e outro lado succedendo se inalteravelmente umas ás outras.
O viajante sente aborrecimento por esses oito kilometros, em que nada ha que o divirta. Vai ancioso de avistar o rio Nabão, e pergunta a si mesmo qual o motivo por que a cidade de Thomar, tão industriosa e commerciai, não tem já posto hombros á empresa de um ramal de caminho de ferro, que partindo de Chão de Maçãs ou do Entroncamento facilite a viagem. Pois seria uma empresa verdadeiramente patriótica. De repente, n'uma transição brusca, mas agradável, deixam-se entrever uns vis- lumbres de amenidade na vegetação. Surge uma ou outra casa. O trem começa a descer, a amenidade augmenta e, finalmente, o valle da cidade apparece, radioso e suave. Então, desde esse momento, o viajante dá-se por bem ^ago de oito kilometros de estrada monótona, empinada e poeirenta. E, já recobrado de animo, vendo de relance o rio, a cidade, com os seus arruamentos geométricos, talhados em linhas parallelas e perpendiculares, o convento de Christo no alto, a igreja e a torre de Santa Maria dos Olivaes na margem esquerda, reconhecendo que está n'uma terra bella pela paizagem e notável pelos monumentos, o viajante vai perguntando ao cocheiro qual é o melhor hotel que poderá encontrar. O trem entra em Thomar pela primeira rua que serve a estrada de Payalvo, a rua da Graça, larga, direita, ladeada de arvores — o que quer que seja de uma avenida. A boa impressão do viajante augmenta e accentua- se.
 Ora o melhor hotel da cidade é hoje o que se intitula União Comercial, na rua da Corredoura, perdão... na rua Serpa Pinto. Sem quebra do meu respeito pela audácia exploradora d'este illustre africanista, de quem fui amigo e admirador, não me resigno a ac- ceitar que o seu no- me viesse substituir o da antiga Corredoura, tão genuinamente portuguez e tão pittores- camente característico dos costumes da idade-média. Melhor tem procedido a cidade de Portalegre, no Alto Alemtejo, evitando a chris- ma das suas duas Corredouras, a de cima e a de baixo. Ainda ha pouco tempo havia outro hotel de confiança : era o Prista, na Praça. Mas fechou, ultimamente, por terem morrido os donos.
 A rua da Corredoura, hoje Serpa Pinto, é a rua nobre de Thomar, o centro do commercio nabantino. Faz lembrar um pouco, no aspecto, a rua do Souto em Braga. Não é comtudo tão extensa. Encontram-se ahi muitas lojas : de fazendas e modas, de chapelleiro, de mercador, de fanqueiro, de droguista, de loiças e vidros, de sapateiro, uma papelaria que faz bi- lhetes de visita e vende livros, um estanco, a Casa Havaneza, e, finalmente, um grande estabelecimento, com 17 portas, do qual são proprietários Almeida, Silvério & Martins. Este estabelecimento enorme, onde tudo se encontra á venda exceptuando fazendas, fica nos baixos do prédio em que se acha estabelecido o Hotel União Commercial.
 O viajante apeia-se, passa por entre rumas de malas de mostruário, que pertencem aos caixeiros viajantes do Porto e Lisboa, e vai descansar um momento na sala de visi- tas, emquanto lhe não apparece o criado do hotel, um homem alto, de aspecto agradá- vel, attencioso, polido, chamado Gil, toiít court. No União Commercial apenas se ouve pronunciar este nome: Gil. Toda a gente chama por elle, que é o mesmo que chamar pelo fac-totum do hotel. Em Thomar ha uma rua que se denomina de Gil Avó. Havendo, pois, dois Gis notáveis na mesma cidade, eu propuz que ao do Hotel União Commercial se ficasse chamando Gil Neto, para fazer pendant a Gil Avô. Não sei se o meu alvitre pegará.

Das janellas do hotel vê-se, sobranceira á Praça, parte da muralha do castello dos Templários, que domina a cidade e todo o valle do Nabão. Na outra extremidade da rua avista-se o principio da ponte. Surpresa agradável : os quartos do Hotel União Commercial são illuminados a luz eléctrica, porque a cidade também o é. A agua do Nabão faz trabalhar a turbina que transmitte movimento ao dynamo (systema Grammes) gerador da illuminação publica e particular. Ultimamente o concessionário também emprega o carvão como motor, por não ser sufficiente a agua do Nabão. A illuminação geral dura até meia hora antes de nascer o sol. Depois de nos havermos installado no Hotel União Commercial^ razoavelmente commodo, comecemos a nossa visita a Thomar. Esta cidadesinha da Estremadura, tão cheia de paizagem e de luz, poderia, pela exuberância dos seus encantos naturaes, dispensar-se de possuir memorias históricas. Mas quem a visita não pode esquecer-se dos cavaileiros do Templo e dos freires de Christo, cujos monumentos estão ainda evocando lembranças da Idade-Media reli- giosa e guerreira, que n'um mesmo edifício acumulava cellas e casernas, baluartes e claustros, o balsão e a cruz. Em Portugal as cidades e villas mais notáveis pela sua belleza são como os anneis de ouro ornados de pedras preciosas. O aro é bom, mas as pedras ainda valem mais. Isto se observa em Thomar. Esta cidade, com os seus 6933 habitantes, está sentada n'uma planície ameníssima,


que o lindo rio Nabão atravessa, e encostada pelo occidente a um monte em cujo topo
se levantam o castello que foi dos Templários e o convento que foi cabeça da Ordem
de Christo. Ao sul a cidade é limitada pela Várzea Grande, vasto rocio que não terá menos de
dois kilometros de circuito ; ao norte pela Várzea Pequena, hoje convertida em Passeio
Publico, quazi á beira do Nabão, e n'um plano superior a elle.

Collocado o observador no valle, a proximidade do rio, claro e alegre, bem como o relevo do monte do Castello, que parece acompanhar a cidade em toda a sua largura, offerecem um bello panorama, que a casaria branca matisa e aviventa. Collocado, porém, no monte do Castello, o observador verá desenhar-selhe aos pés a cidade, regularmente alinhada, e a fita rolante do Nabão desdobrarse como um es- malte luminoso que anima o campo e sorri á povoação, vivificando ambos. E' uma rua de agua que atravessa a ci- dade rutilando ao sol. Diz-se que na margem esquerda do Na- bão houve outr'ora uma cidade romana, cha- mada Nabancia, ainda florescente no tempo dos godos. Emilio Hubner estranha, porem, que os auctores antigos lhe não fizessem a menor referencia. A tradição indica o sitio dos Marmellaes, na margem esquerda, como tendo sido o da antiga cidade de Nabancia. O que é certo é que, circumscriptas por uma estacada, ainda ahi se conservam algumas ruínas, a cargo de um velho guarda, subsidiado pelo Estado. Numa casa térrea, sob a exclusiva dependência do guarda, também se conservam, aliás expostas a um facil desvio, moedas, vasilhas e telhas romanas, encontradas nas ex- cavações. No pequeno mas interessante museu do sr. Mário de Magalhães vi em Thomar alguns destroços de uma estatua procedentes da mes- ma origem. (Estampa n." i86). 




Diz-se que o perímetro da cidade de Nabancia se alargava até ao sitio onde hoje está, na mesma margem, o cemitério de Thomar. Mas as ruinas patentes não dão a impressão de serem o ultimo vestigio de uma cidade importante, senão que de um pequeno grupo de edificações. A tradição continua affirmando que em Nabancia houvera um castello no logar de Ceras 1. ; que em Nabancia soffrêra morte affrontosa Santa Irene ou Iria e que também ali, por motivos que ao deante exporemos, tratou o 6 ° mestre da Ordem dos Templários, D. Gualdim Paes, de reconstrua o castello e de levantar um templo destinado a ser núcleo de uma primeira tentativa de povoação christã. Mas em breve os Templários, reconhecendo superiores vantagens na margem direita do Nabão, aproveitaram n'a para edificar um novo castello, onde se fortificaram sobre um monte cortado quazi a pique pelo norte, oriente e sul. Então o castello da margem esquerda ficou abandonado. O mesmo não aconteceu, porem, ao  templo que já estava concluído sobre as ruinas de outro que fora dos godos e que continuou a servir para os actos religiosos da povoação nascente e para sepultura

(1. Ceras é corrupção de Ceres. Era no termo de Thomar, diz o Padre Carvalho ; e o castello fícava n'um outeiro junto á ribeira de Ceres. Quando, após o fallecimento de D. Fernando o For/roso, o rei de Castella, genro de D. Leonor Telles, entrou em Portugal, diz Fernam Lopes que numa das jornadas foi comer a Ceras e dormir a Thomar.)

dos Mestres da Ordem. E' Santa Maria dos Olivaes, postoque o seu orago seja Nossa Senhora da Assumpção. Sobre a margem direita foi crescendo a povoação, protegida, no alto, pelo castello dos Templários : era villa, talvez cidade, porque n'esta região pullularam povoações com o pomposo nome de cidades. A tradição fala, como vimos, da antiga Nabancia. E Jorge Cardoso, no Agiologio, fala de outras três cidades, chamadas Bezelga, Caldellas e Concórdia, que formavam entre si um triangulo escaleno, O que é certo é que uma das freguezias do actual concelho de Thomar se chama Bezelga, e que n'esta freguezia ha um outeiro ainda hoje chamado «da Cevedade.» Ora a povoação da margem direita do Nabão, prosperando á sombra benéfica dos Templários, deve ter sido importante, mas a categoria de cidade, no sentido m.oderno, apenas lhe foi concedida por carta regia de 13 de fevereiro de 1844. O seu actual nome — Thomar — veio por corrupção do nome que os mouros deram ao rio e que parece significar tagua doce e clara».


Outros interpretam d'este modo : «agua tão doce como as tâmaras». Succedeu, pois, que a cidade tomou o nome do rio, e ficou chamandose Thomar, ao passo que o rio recebeu do antigo território de Nabancia o nome de Nabão.A cidade moderna está ligada pelas tradições de Nabancia e pela historia dos Templários á margem esquerda, como também o está materialmente pela ponte construída sobre o Nabão. Comquanto Thomar se ache situada na margem direita, a sede da única pa- rochia da cidade continua a ser, official- mente, a igreja de Santa Maria dos Oli- vaes.Mas, para maior commodidade do publico, o parocho foi auctorisado a bi- nar, podendo celebrar os actos religiosos da parochia na igreja de S. João Baptista. D'antes, os baptisados eram feitos em S. João e os casamentos em Santa Maria dos Olivaes. 
Hoje, raras vezes se abre a igreja de Santa Maria, a não ser para que os viajantes possam visitala. Todos os actos do culto parochial se realisam em S. João. 
A margem esquerda, postoque supplantada pela direita, toda se ufana com as ruí- nas de Nabancia, com a lenda de Santa Iria e com a igreja de Santa Maria dos Olivaes. Ficou existindo sempre uma velha rivalidade entre a população das duas margens, facto que se justificaria aqui bastantemente por uma natural emulação entre o passado e o presente, mas que aliás é vulgar em outras cidades e villas. No norte do paiz, também ha idêntica rivalidade entre os habitantes de Barcellos e os de Barcellinhos, separados pelo Cávado; e a respeito de Santarém já notámos a hostilidade existente entre os bairros, distantes, da Ribeira e de Marvilla.


Os thomarenses designam os habitantes de Além da Ponte pelo epitheto irónico de «hespanhoes» e ao bairro d'aquella margem dá o povo da cidade o nome de Hespanha, desdenhosamente.
N'outro tempo a rivalidade era mais viva e sanhuda. Havia frequentes conflictos, tiroteio de impropérios e de pedradas. Hoje ainda se armam alguns motins nocturnos, por causa das raparigas que trabalham

na Real Fabrica de Fiação, situada na margem esquerda, e por causa do antagonismo das philarmonicas. 
As operarias, que são das aldeãs próximas, pernoitam durante a semana Além da Ponte e só ao domingo vão a casa. Rapazes da margem esquerda e rapazes da margem direita requestam-n'as á porfia. D'esta concorrência amorosa resultam alterações, pugilatos, "pancadaria.

Os íhespanhoesí teem a sua philarmonica, que se intitula «Gualdim Paes». Os thomarenses teem outra philarmonica, que se chama «Nabantina». Custa-me não poder dizer, para evitar a pornographia, a designação popular de uma e outra philarmonica. Quando os músicos da «Gualdim Paes» ou da «Nabantina» estão fardados, achamse sempre em occasião próxima de se desfeitearem uns aos outros. O uniforme dá-lhes bravura. Ha annos, encontrando-se as duas philarmonicas em uma festa na freguezia de S. Miguel de Carregueiros, pegaram-se uma com a outra e quem salvou a situação foi uma mulher de Thomar, que varreu a feira, pondo em debandada os bravos antagonistas.


Esta mulher ainda hoje vive. Chamam-lhe, e com razão, «Padeira de Aljubarrota». Fora da formatura, despida a farda, a rivalidade afroixa. Ha rapazes de «Além da Ponte» que fazem parte da Philarmonica Nabantina, e rapazes da cidade alistados na Philarmonica Gualdim Paes. A margem esquerda ufana-se, como iamos dizendo, com a secular tradição de Santa Iria, que tão heroicamente cultivou a virtude no seu convento junto ao no Nabão. Vejamos como isso foi. Frei Isidoro Barreira, na Historia da vida e milai^res da gloriosa virgem Santa Kria (Lisboa, ,1618) dá uma versão que é a mesma que foi aproveitada por Garrett nas I 'iagens. Sem embargo, correm outras versões, e o próprio Garrett, também nas Viagens, traz uma variante em verso, totalmente contraria á de Frei Isidoro. Segundo este, no anno 653 da éra christâ, sob o domínio dos godos, havia em Nabancia dois mosteiros. Um de monges, junto ao sitio onde está hoje a igreja de Santa Maria dos Olivaes, era regido pelo abbade Celio, tio de Iria. Outro, de freiras, que ficava sobre o Nabão ao pé da ponte, onde a virtuosa donzellinha foi educada por suas tias paternas, de nobre sangue, Casta e Júlia. A cidade de Nabancia era então governada por um cônsul de nome Castinaldo,

cujos paçoss e defrontavam com uma capella de S. Pedro, onde as freiras iam no dia 29 de junho, por occasião da festa, fazer oração ao venerando apostolo. Parece que foi n'uma d'essas occasiões que o joven Britaldo, filho do cônsul, viu Iria, e ficou loucamente enamorado. A fim de atalhar essa violenta febre de amor. Iria, fortalecida por sua mesma vir- tude, resolveu avistar-se com Britaldo e chamal-o á razão, dando lhe piedosos conselhos. Não sem custo se resignou o moço a ouvir-lh'os e a acceitar-lh'os. Mas declarou-lhe logo que, se convinha em que ella conservasse intacta a flor da sua virgindade, de nenhum

modo supportaria que, publica ou clandestinamente, pertencesse a qualquer outro homem. Ficou assim acalmado o vulcão, e triumphante a virtude. Mas o Diabo não desanimou no empenho de perder Iria, e dementou de amores por ella o monge Remigio, seu director espiritual, até então sacerdote exemplar e conselheiro leal. A forte donzellinha censurou-o asperamente, fez lhe vêr que era o Inferno que o tentava para conquistar-lhe a alma. O monge, de boa ou má fé, mostrou-se arrependido e convicto. Mas se procedia de boa fé, voltou-lhe em breve a cegueira, porque procurou abalar a virtude de Iria dando-lhe uma beberagem que produziu apparentes signaes de gravi- dez. Vendo-se assim desacreditada, pensava certamente o desvairado Remigio, Iria não

continuará a defender sua castidade, convencida de que ninguém ha de tel a por innocente. A infâmia lavrou, o descrédito cresceu, e chegou aos ouvidos de Britaldo, que, enfurecido, resolveu cumprir a terrivel ameaça.



Em seu amor e orgulho, não podia o filho do cônsul supportar a idea de que a linda Iria, que não fora sua, houvesse pertencido a outro homem. Quiz vingar-se, e tomou por instrumento de vingança o soldado Banaão, alma damnada prompta a servil-o no bem e no mal. Sabendo que todas as noites Iria fazia penitencia n'uma gruta cavada na rocha,

junto ao rio — ainda hoje a gruta é visível — introduziu-se na cerca do convento e esperou Iria, como um tigre espera a victima entre os juncaes. Veio Iria, como costumava, fazer oração e penitencia na noite de 19 para 20 de outubro de 653. O soldado Banaão sailhe ao encontro, faz novas instancias em favor de Britaldo e, como fossem recusadas, de um só golpe de cutello a degola, arrancando-lhe em se- guida algum dos seus vestidos para leval-o ao desvairado mancebo, como prova de haver cumprido o que lhe fora encommendado. Depois lança o cadáver ao rio. Ainda agora o povo indica o sitio do Nabão, junto ao convento, em que o cadáver cahiu. Chamam-lhe o «pego de Santa Iria». Conta Frei Isidoro Barreira: «N'este pego se acharam pelo discurso do tempo muitas pedras e seixos salpicados com gottas de sangue tão fresco e vermelho, que pa- rece a quem hoje as vê haver poucas horas que n'ellas se derramou, sendo passados tantos centos de annos que ficaram rubricados de seu puro sangue, e não se acharam estas pedras só n"aquelle logar, mas também no rio Nabão, onde seu sagrado corpo foi lançado com o sangue, que ia derramando por suas correntes». Emquanto o Nabão arrastava para o Zêzere, de que é affluente, o corpo ensan- guentado, teve o monge Celio, tio de Iria, a clara visão do que se havia passado na gruta. Alvoroçou-se o povo de Nabancia e quiz ir em procura d'esses preciosos despojos mortaes. Foi. Mas aqui interrompo eu a narrativa, porque o seu complemento já não per- tence á historia de Thomar, e sim á de Santarém. Com razão estranha Garrett que a lenda em verso seja tão diferente da versão dos agiologios. Pois é. E o ieitor o avaliará por seus próprios olhos:


O que há apenas de commum entre esta lenda popular e o texto dos chronicons é a resistência de Iria e a morte affrontosa que padeceu por defender sua virtude. Castilho ensoou duas composições poéticas em memoria e louvor de Santa Iria. Uma, que denominou chácara, é a versão religiosa, a historia da pureza, persegui- ção e morte, da famosa santa nabantina, conforme os livros mysticos. Damos o trecho inicial d'essa composição, na impossibilidade de reproduzir na integralmente por ser extensa:


Esta chácara vem, completa, nas Excavações poéticas, publica- das em 1844. A outra composição já a deixamos transcripta quando falamos de Santarém. No local do antigo convento de Santa Iria foi em 1476 fundado outro, de freiras franciscanas, con- servando na invocação o nome da Santa que tornou aquelle sitio eternamente memorável. Alem do livro de Frei Isidoro Barreira, existe um Compendio da vida da gloriosa virgem e martyr Santa Iria, com uma novena da mesma santa, por D. Maria Elena (sicj de Sousa Mexia em 1763. Esta senhora esteve recolhida no mosteiro a que acima nos referimos. Sabe-se ter sido de nobre condição, illustre por sangue e antepassados, porque o diz uma das licenças para a impressão do livro. Segue a mesma versão do padre Isidoro Barreira, e dá alguns pormenores curiosos, taes como : que o pego, a que o corpo de Santa Iria foi lançado, ficava então (século xviii) dentro d'aquelle mosteiro, sendo que hoje fica da parte de fora; e que a sua agua, do pego, era efficaz para curar sezões e outras enfermidades.

Comprehende-se que na província da Extremadura, onde abundam as regiões sezo naticas, dois dos santos mais celebres n'esta província tenham sido invocados como in- tercessores contra o flagello do empaludismo. Refiro-nic a Santa Iria e a S. Frei Gil, que também livrava de sezões, e gota. Hoje estes dois cultos estão quazi apagados na Extremadura ; não são mais que memorias antigas. Em Thomar ha, é certo, a feira de Santa Iria, que recorda o dia da sua festa, mas já não ha qualquer commemoração religiosa nos templos. A novena principiava outr'ora a 12 de outubro, e pelo livro de D. Ma- ria Helena de Sousa Mexia se vê que as freiras a faziam ainda n'aquelle tempo. Na cidade de Santarém, o culto de S. Frei Gil é um culto morto, de que só reíta a tradição dos livros. No anno de 1862 representou se no theatro do Gymnasio, em Lisboa, um drama sacro, cujo assumpto e ti- tulo era — Santa Iria. Auctor, César de Vasconcellos. A gloria da virtuosa martyrnaban- tina chegou até aos nobiliários. Houve um marquez de Santa Iria, que foi o 2." conde de Alva, D. Luiz de Sousa Coutinho Monteiro Paim. Este titular falleceu a 5 de abril de i85o. No convento da invocação de Santa Iria, agora secularisado — em parte d'elle func- ciona uma fabrica de tecidos de lã — conservase ainda, dentro de um nicho da mura- lha, sobre o rio, a imagem da Santa, e a capella que tem entrada pela rua Marquez de Pombal e que é muito apreciada pela belleza de um retábulo em alto relevo. Ramalho Ortigão faz-lhe no Culto da arte em Portugal esta calorosa referencia : «Na linda igreja do convento de Santa Iria, que o fallecido architecto Nepomuceno comprou por Soo.^fQOO réis, e se achava encorporada no mosteiro fundado por D. Ma- ria * de Queiroz, viuva de Pedro Vaz de Almeida, veador da fazenda do infante D. Henrique, ha um retábulo em baixo relevo de bella pedra d'Ançam, que é simples- mente, pelo desenho, pelo estylo, pela mão d'obra e pelo estado de conservação em que se acha, uma das obras capitães da esculptura da Renascença em Portugal. Com- põe-se de dezesete figuras. Junto da cruz, de que pende a mais ideal figura do Re- demptor, está prostrada Santa Maria Magdalena. Acompanhama a Senhora da Sole- dade, as três Marias, Nicodemus, José de Arimathea e S. João Evangelista. No pri- meiro plano, dois soldados a cavallo, em magnifico trage do século xvi. Enquadra a composição um bello pórtico, de columnas e tabeliãs preciosas, chancellado pelo brazão dos Valles». Na mesma margem esquerda do Nabão, a igreja de Santa Maria dos Olivaes, berço da parochia, conserva no frontispício as linhas características de sua remota anti- guidade : estylo gothico, porta levemente ogival, rosácea encimada por um singelo fron- tão triangular, que uma cruz remata. Nos corpos lateraes da fachada duas janellas, uma em cada, bipartidas por uma columna que no alto se bifurca.


No interior, três naves, em que o desenho da ogiva é ainda muito timido, accu- sando um período inicial. Apenas um dos arcos sobe mais agudo : foi manifestamente uma modificação por causa do coro, que aliás já não existe. A capella-mór é lavrada em artesões, que nascem de columnas. Não ouso affirmar que seja construcção primitiva. Na segunda capella a contar da porta principal, laoo da Epistola, está o tumulo de D. Gualdim Paes. A 13 de outubro de 1895, dia do 7.° centenário do passamento do Mestre, ali foi o povo de Thomar, em patriótica romagem, levar-lhe homenagens e preitos. Diz isto uma inscripção recente. Em todo o templo ha vários epitaphios gravados no chão e até n'uma columna. A torre, fronteira á igreja, é quadrada e de fortíssimas paredes, chegando a dar a illusão de um baluarte que defende o templo. Estes dois monumentos, vizinhos um do outro, fazem-nos remontar ao momento histórico que os justifica, isto é, ás origens da povoação. Pôde dizer-se que a antiga villa de Thomar nasceu com a nacionalidade portugueza. Affonso Henriques, caminhando em som de guerra de Coimbra para o sul, fez voto de doar todos os direitos ecclesiasticos de Santarém aos cavalleiros do Templo, seus auxiliares na entrepresa, se a Deus aprouvesse conceder-lhe a victoria sobre os mouros. Venceu, e quiz cumprir o voto. Affonso passou triumphante de San- tarém a Lisboa, mas o primeiro bispo christão que poz n'esta ultima cidade embargou a doação feita aos Templários para defender assim os interesses da nova diocese ulyssiponense. Ao cabo de longos annos chegaram a accôrdo o bispo e os Templários: por effeito deste accôrdo Santarém ficou sob a jurisdicção do bispo de Lisboa e os cavalleiros do Templo entraram na posse dos territórios de Nabancia. Foi então que os Templários trataram de reconstruir o castello e levantar a igreja da margem esquerda do Nabão, passando depois a erigir novo castello (pelas razões já expostas) no monte da margem direita. N'esta margem, á sombra do castello novo, ia florescendo a povoação, -quando os mouros, capitaneados pelo imperador de Marrocos, quizeram desaggravar seus passados desastres, assolando o Algarve, o Alemtejo e a Extremadura, e pondo cerco ao castello de Thomar. Os Templários defenderam-se como leões. Os mouros, desistindo da empresa, arrazaram, porem, a povoação, talaram os campos, incendiaram as messes, almoinhas e abegoarias, alastraram a devastação e o luto por toda a parte. Mas o tino colonisador de Affonso Henriques havia de produzir, mais uma vez, seus bons fructos. As doações tão largamente feitas aos Templários eram tríplice garantia de colonisação, de defesa e de repovoação.
Os cavalleiros do Templo haviam fundado a villa. Aos mouros estorvaram a conquista do castello. Mas assolada por estes a povoação — o Mestre D. Gualdim Paes a fez reconstruir e repovoar. De modo que.




no seu inicio e renascença, Thomar foi obra dos Templários, esses, como outros, bel- licosos cavaileiros christaos da Idade-Media. Comtudo a Ordem do Templo viu o seu tempo contado; desabou em França como um colosso, para não mais resurgir em parte alguma. El-rei D. Diniz soube impedir que em Portugal a Santa Sé pudesse lançar mão dos bens que tinham pertencido aos Templários e conseguiu transmittilos intactos a uma nova Ordem de cavallaria, a de Ghristo, que por iniciativa própria instituiu.
Assim, Thomar, e outras povoações portuguezas, viram succeder a uns protectores outros protectores, aos cavaileiros do Templo os cavaileiros de Ghristo, tanto mais que esta nova milicia, no reinado de D. Pedro I, trasladou a cabeça da sua Ordem de Castro Marim no Algarve para a villa de Thomar. Nada perdeu esta villa com a substituição. Os cavaileiros de Ghristo ganharam em breve grande poderio, áquem e alem mar, e os seus Mestres, todos elles príncipes de sangue, com exclusão dos primeiros sete, aqui residiram por vezes nos paços do con- vento que a nova Ordem foi successivamente ampliando junto ao antigo castello de Gualdim Paes. Ainda hoje, se bem que tendo soffrido varias transformações, está de pé, nas suas linhas geraes, o venerando castello dos Templários, e o convento de Ghristo *. A muralha corre na direcção norte-sul. No angulo norte desenha-se a cidadella, quadrilonga, flanqueada de torres. Dominando toda esta soberba construcção militar ergue-se á altura de 20 metros a torre de menagem, também quadrangular, com dois andares, duas janellas, diversas setteiras e barbacans. O convento de Ghristo, annexo ao castello dos Templários, é um edifício verdadei- ramente monumental, especialmente por duas das suas fachadas, a do sul e a do poente, pela sua notável charola e pelos seus claustros. A fachada sul foi prejudicada estheticamente pela construcção do claustro dos Filippes, que apenas lhe deixou a descoberto a lindíssima portada com um primoroso baldaquino recortado em arco e preenchido de soberbos lavores. A fachada occidental, compreendendo a notabilissima janella da Gasa do Gapitulo, que dá sobre o claustro de Santa Barbara, recommenda-se não só pelo trabalho de esculptura, como pelo symbolismo de seus opulentos ornatos. Ramalho Ortigão descreve-a, enthusiasticamente, dizendo : «As columnas na janella são polipeiros de coral, dos mais profundos recifes do Oceano, e troncos d'essa palmeira, cuja sombra cobriu o berço da civilisação no litoral mediterrâneo, providencia dos peregrinos nos oásis do deserto, á qual os árabes da Península dedicavam uma festa de primavera, tendo por fundamento a disseminação do pólen — a arvore Santa, a arvore da Bíblia, a arvore de Jesus, cujo ramo symbolico é um attributo da paixão e da paschoa, da gloria e do martyrio.
Os demais elementos decorativos são as ondas do mar, taes como ellas se representam na heráldica; são os troncos seculares e as raízes profundas dos sobreiros dos nossos montes, estrema ex- pressão de força na fecundidade da seiva, que prende o roble, assim como a tradição e a família prendem a débil e errante creatura humana ao coração da terra em que nasceu. Guizeiras, como as das mulas de tiro, engatadas á carreta alemtejana, emmoIham contorcidas varas de sobro e de azinho, como nos feixes de lictor da magistrutara romana. Solidas correntes e possantes cabos de bordo, de que pendem em discos as

(1.Ultimamente (1907) iniciou-se a abertura de uma avenida que ligue a cidade com estes dois monumentos Bem precisa era.) 

bóias de cortiça, enlaçam a decoração, amarrando a vigorosamente á empena por fortes argolões, como se amarraria uma nau ao cães de um porto. «Toda a composição, partindo das espáduas de um homem, que parece sustentarIhe todo o pezo, ascende n'uma trepidação de algas e de folhagem para a cruz de Chnsto entre as espheras que tomara por empresa o rei venturoso de Portugal trium- phante na vastidão dos mares, em todo o circuito do globo. E o poema esculptural re- mata por cima da janella da rosácea magestosa do templo, formada em circulo pelas pregas e pelo bolso arfante da vela risada de um galeão da índia». No interior da igreja do convento de Christo, a riqueza, a arte e a historia dão-se as mãos para produzir um conjunto de bellezas que se impõem á admiração de nacionaes e estrangeiros.
Sobre a obra primitiva dos Templários passou um sopro de restauração manuelina, espalhando largamente os germens da grandeza e da opulência. Architectos dos primeiros do seu tempo, como João de Castilho, ali deixaram o nome perpetuado na expressão caracteristica d'esse estylo tão gra- ciosamente portuguez, tão rico de ornamentação florida, que constitue o «mo- mento histórico» da esculptura portu- gueza.Os artczÕes, os arcos, os florões e bocetes, as sumptuosas cadeiras do coro, que os francezes levaram; as pinturas da charola, incluindo quatro painéis da escola de Gran Vasco; os paramentos riquissimos, a exuberância e pericia dos ornatos, espalhados com pródiga mão, firmaram a justa celebridade d'este edifício monumental.
 Desde o infante D. Henrique até aos Filippes, os príncipes e reis de Portugal deixaram ligada sua memoria ao convento de Christo.
O infante D. Henrique construiu os paços do Mestrado, de que ainda existem ruinas. Dos oito claustros do convento, dois também por elle foram mandados construir. São o do Cemitério e o das Lavagens: aquelle, de uma sobriedade elegante, em arcos ogivaes muito nítidos; este, lastimosamente arruinado, quazi perdido, communicando com o primeiro. Como o seu nome indica, o do Cemitério era destinado ao repouso eterno dos frei- res de Christo. Ali jazem alguns homens notáveis: entre elles Balthasar de Faria, que foi quem por ordem de D. João III impetrou em Roma a bulia do Santo Officio, e que se conserva mumificado. . . como o espectro da própria Inquisição. O claustro das Lavagens era destinado aos usos domésticos dos freires. Alem d'estes dois claustros, ha o da Hospedaria; o de Santa Barbara, que se diz ser obra de elrei D. Manuel; o do Micho, que parece datar de D. João III; o dos Filippes, que foi começado pela rainha D. Catharina e acabado pelos monarchas hes- panhoes; o das Sentinas; e o dos Corvos, que pertence ao conde de Thomar. De todos estes claustros, o mais imponente, postoque bastante carregado em sua mesma grandeza, é o dos Filippes. D. João III mandou construir, alem de um claustro, dormitórios, casa do noviciado, c varias outras officinas. A sacristia é do tempo dos Filippes.


Também se deve a um Filippe, 2." de Portugal, o aqueducto que traz agua ao convento desde Santo António dos Pegões, uma légua de distancia. Em parte do edifício do convento está hoje installado o hospital militar. Outra parte foi cedida pelo Estado para residência dos officiaes de infantaria i5 e suas famílias. Alguns dos refugiados boers, entre elles o general Pienaar, também ali tiveram guarida. O antigo refeitório dos freires foi arrendado pelo sr. conde de Thomar, a quem serve de celleiro. Não sahiremos do convento de Christo sem lembrar que em 1581 se reuniram na Casa do Capitulo as cortes que reconheceram Filippe II de Hespanha como rei de Portugal. Este monarcha veio assistir á sua acclamação e, depois d'ella, aqui se de- morou algum tempo. Seu filho, passados quarenta annos, também esteve em Thomar, onde presidiu a um capitulo geral da Ordem de Christo. Alem do castello dos Templários, do convento de Christo e de Santa Maria- Açude do Nabão junto a pente ria dos Olivaes, 3 cidadc de Thomar possue ainda outros monumentos que merecem attenção. Na praça de D. Manuel existem dois, fronteiros um ao outro.
 E' um d'elles a linda igreja de S. João Baptista, de três naves, com a sua elegante torre oitavada, e o seu rendilhado púlpito, que não encontrará rival no nosso paiz, a não ser em Santa Cruz de Coim.bra. Mas quantas barbaridades, de lesa arte, não teem sido praticadas tanto no exterior como no interior da igreja de S. João! Um horror! Só visto. Defronte do templo, erguem-se os paços do concellio, singelos mas graves sobre uma alta arcada. N'elles está comprehendida a cadea da cidade. Estes paços vieram substituir os antigos, que eram na rua dos Estaus. Tanto a igreja de S. João como a casa da camará são obra de elrei D. Manuel. Por detraz d'este ultimo edifício fica o mercado em que a cidade se abastece diaria- mente.Da praça de D. Manuel partem, parallelas uma á outra, as duas ruas mais centraes da cidade : a da Corredoura e a de S. João, e á mesma praça vêem desembocar outras duas ruas que a ligam com os extremos norte c sul da cidade: a rua Direita da Várzea Pequena e a rua Direita da Várzea Grande. Na rua da Graça, á qual já fizemos referencia no principio d'esta noticia como sendo uma das mais bonitas da cidade, está situado o hospital da Misericórdia, fundação de elrei D. Manuel ; e quazi defronte o escriptorio da Companhia Viação Thomarense. Ao fundo d'esta rua, mas )á na dos Estáus, com a qual communica, edificou elrei D. Duarte os seus paços, chamados da Ribeira. Apertado pela peste, D. Duarte viera correndo o Alemtejo, de Évora para Aviz, de Aviz para Ponte de Sôr e, fínalmente, procurando melhor clima na Extremadura, refugiara-se em Thomar.

Diz Ruy de Pina na Chronica: «pousou nos Paços da Ribeira, onde logo adoeceu de febre mortal, que doze dias nunca o leixou : e entrando nos treze, que eram nove dias de setembro, anno de mil quatrocentos trinta e oito, em que grande parte do sol foi cris, deu sua alma a Deus já nos Paços do Convento a que foi levado.» No dia seguinte, também em Thomar, foi acclamado rei D. Affonso V, então de menor idade. No sitio dos antigos paços de D. Duarte está hoje um prédio que pertence ao sr. conselheiro Silva Amado, lente da Escola Medica de Lisboa. No mesmo alinhamento existe uma construcção, do tempo de D. Manuel, a qual conserva o nome de Lagar d'el-rei. Parallela á rua da Graça e perpendicular á dos Estáus, fica a rua dos Arcos, onde são ainda visíveis os vestígios das arcadas correspondentes aos bazares que D. Duarte destinou aos judeus para ali exercerem seu commercio. Alem d'estas ruas, a cidade de Thomar conta varias outras, taes como : de Joaquim Jacinto (antigo facuitativo municipal) ' do Everard (engenheiro francez, pai do actual jornalista do mesmo appellido), de Gil Avô, cuja etymologia se ignora ; do Camarão, da Palmeira, dos Oleiros, da Capella, de Pedro Dias (antigo provedor da Misericórdia), etc. Dada a primasia ao monumental convento de Christo, merecem comtudo menção outras três casas religiosas que a antiga villa de Thomar possuiu, a ^aber : ao sul, na Várzea Grande, a de franciscanos, hoje quartel militar; ao nascente, a de Santa Iria, sobre o Nabão; ao norte, a dos capuchos, hoje propriedade particular, vizinha da capella de Nossa Senhora da Annunciada. Também ao norte da cidade, sobre um monte, alveja o santuário da Senhora da Piedade com o seu escadorio de du- zentos degraus, que principia á sahida da Várzea Pequena: no topo, a ermida muito branca. Nossa Senhora não tem na cidade de Thomar mais fervoroso culto do que aquelle que lhe é rendido n'este santuário. A Várzea Pequena, hoje largo Hintze Ribeiro, está em parte transformada em Passeio Publico. Tem canteiros de flores, e um coreto onde aos domingos vai tocar a banda regimental. Um dos melhores, e mais modernos melhoramentos da cidade, é a Avenida Marquez de Thomar, que da Várzea Pequena vem descendo, sobranceira ao rio Nabão, até á Levada. Na Várzea Grande, hoje largo Pimentel Pinto, extremo sul da cidade, as ruas são ladeadas de arvores: ao íundo ha uma alameda e um jardimsinho, dentro do qual se levanta' uma agulha de pedra, cuja significação histórica se ignora. E' aqui, na Várzea Grande, que a 19 de outubro se faz a grande feira de Santa Iria. Dura três dias, e costuma ser muito concorrida. Ao bom tempo que preceda a feira, se o ha. o que quazi sempre acontece, chamam os thomarenses : Verão de Santa Iria».


 (1. Joaquim António Jacinilio, muito estimado em Thomar, onde exerceu diversos cargos adminisiraiivos. Era natural de Pedrogam (ír.inde, e falleceu em Thomar, com 85 .inno'?, no mez de fevereiro de lyof')



Também na Várzea Grande se realisa um mercado de gados no ultimo domingo de cada mez. A' Várzea Grande prendem-se memorias gloriosas do condestavel D. Nuno : aqui manobrou a sua iioste, tirocinando, nas vésperas da batalha de Aljubarrota. Foi o caso que D. João I estava em Abrantes e, sabendo que os castelhanos de novo tinham invadido o reino, mandou chamar ao Alemtejo o condestavel. D. Nuno era de opinião que se tratasse logo de cortar o passo aos castelhanos. O rei e os do seu conselho hesitaram. Ardendo em pressa guerreira, D. Nuno deixa o rei em Abrantes, e avança sobre Thomar, onde, para adestrar a sua hoste, vai simu- lando combates todos os dias. Finalmente, triumpha a opinião do condestavel, o rei vem juntar-se lhe, e na Várzea Grande se reúne todo o nosso pequeno exercito, composto apenas de 6:500 homens. A 10 de agosto de 1385, dia de S. Lourenço, parte de Thomar, pela estrada de Ourem, esse diminuto exercito ao encontro de 3o:ooo castelhanos... para vencelos ! Quem da rua dos Estaus seguir pela estrada da Barquinha, que a continua, encontrará uma pyramide de pedra, muito aguda; uma capella dedicada a S. Lourenço; e, junto á margem do rio, um padrão que o povo chama redondo per ter a forma cylindrica. O primeiro d'estes monumentos, cuja inscripção está semi-apagada, parece referir-se ao tempo de D. Sebastião. 
O padrão redondo, posto não tenha inscripção alguma, suppõe-se que commemore



talvez por ordem de D. João III a juncção das tropas de D. João I com as do condestavel D Nuno. E a capella de S. Lourenço parece continuar a commemoração, por ser a 10 de agosto, dia do mesmo santo, que os exércitos reunidos marcharam da Várzea Grande sobre Ourem. Falámos jí da grande feira de Santa Iria e dos mercados mensaes; falta dizer que na Praça de D. Manuel se etfectua um mercado semanal, aos sabbados, muito abundante em géneros alimentícios. Aos seus consideráveis recursos agrícolas, devidos á fecundidade do solo, reúne Thomar aptidões industriaes e, auxiliada pelo rio Nabão, um importante movimento fabril. Este rio nasce ao sopé da serra de Alvaiázere, passando entre Freixianda e Aldêa da Serra.
 Traz ahi tão pouca agua, e essa mesma desviada para regas, que até lhe chamam «rio sêcco». Pouco abaixo do logar de Formigaes é abastecido por grandes olhos de agua, que lhe augmentam o vulto. Oito kilometros ao sul de Thomar, um pouco abaixo de Matrena, estreitece de novo, enfia por un apertado canal para ir lançar se no Zêzere. Não foi talvez com inteira propriedade que ouvi dizer a um thomarense : — O Nabão é o único rio de Portugal que nasce e morre dentro do mesmo concelho. Perde a sua importância em Matrena, é certo, mas apenas se reúne ao Zêzere junto a Constância. 
A agua do Nabão, reforçada pelos motores a carvão, alimenta varias fabricas, a saber: da Companhia Real de Fiação e Tecidos (que data do tempo do marquez de Pombal, sendo chamado para seu fundador o industrial francez Jacome Ratton)com 1:301 operários; a chamada de Santa Iria, também de fiação e tecidos, com 24 operários; três de papel —duas da Companhia de Papel do Prado, uma em Prado, com 292 operários, outra em Marianaia, com 140; pertencente á Companhia Thomarense de Papel, a de Porto de Cavalleiros, com 175 operários; finalmente, a fabrica de moagens «Nabantina», além de muitas azenhas, moinhos de azeite, etc. 
O Nabão é um poderoso elemento vitalisante da cidade, não só porque lhe au- gmenta a riqueza, como também porque lhe varia o aspecto que, sem o rio, havia de resultar do conjuncto de ruas ho"izontaes ligando-se umas ás outras monotonamente. Junto á cidade, e ao nascente, um açude faz torcer para fins industriaes um braço do Nabão, que se chama a Levada.
 E' a Levada que fornece o motor á fabrica de moagens, a diversos lagares de azeite e á turbina que põe em movimento o dinamo da íllumínação publica. Graças á sua posição geographica, e á sua industria alimentada pelo Nabão, Thomar é um importante centro commercial, ligado por estradas com o alto Ribatejo —a Barquinha, Constância e Abrantes; com duas importantes cidades da Extremadura, Leiria e Santarém; e pelas linhas férreas do Porto, Beira Baixa, Beira Alta, Minho e Douro, com o norte do paiz. Assim achou a cidade de Thomar um.a compensação ao prejuizo que lhe causou o ter sido desviado para Leiria o transito de Lisboa e Santarém para Coimbra e Porto. A cidade, essencialmente labo-iosa, carece de vida mundana, como quazi todas as cidades de província, mas talvez um pouco mais que as outras. As noites, se exceptuarmos as dos domingos, são longas c vasias. 
Quando ali estive ultimamente, pela segunda vez, cheguei n'um domingo e tive a felicidade de ouvir á noite, na Várzea Pequena, a banda militar. Creio já ter dado a perceber que está aquartellado em Thomar o regimento de infantaria 15.

Nas duas noites seguintes, segunda e terça-feira, sahia depois de jantar para ver o Nabão, gastando alguns momentos debruçado na ponte ou na cortina da Avenida Marquez de Thomar, e depois ia sentarme num banco da Praça de D. Manuel a olhar para a torre de S. João. Valeu me na ultima noite o sr. dr. Vieira Guimarães, que durante algum tempo gentilmente me acompanhou á beira do Nabão. O luar era divino.


Mas quando eu estava sentado n'um banco da Praça, e Ouvia ás 9 horas da noite tocar o sino que impõe silencio aos presos da cadêa, pesava me a idéa de que, por amor do paiz, para o estudar, tenha a gente que passar longas ho.-as de solidão fora da sua casa, medindo o tempo, minuto a minuto, longamente, infinitamente. Comtudo, ha dois clubs em Thomar, um na rua Serpa Pinto (Corredoura), que é o mais elegante, e outro na Praça, Club Artislico; ambos abrem á noite, mas não teem gente. Também ha o antigo Theatro Nabantino, na rua Direita da Várzea Grande, mas poucas vezes funcciona.

Visitei a Escola Industrial Jacome Ratton, dirigida pelo distincto pintor e meu pre- sado amigo sr. Henrique Pinto. Está installada no palacete da rua da Capella — casa histórica — muito arruinado, á espera de concertos indispensáveis. O ensino acha-se hoje reduzido a desenho elementar e ornamental. O director emprega os seus mais dedicados esforços para levantar a escola, mas a reducção do programma, o estado da casa e a diminuição da frequência combatem todos esses nobres esforços. Em 1902-1903 houve 46 alumnos; mas no principio de 1903-1904 apenas estavam matriculados 25.


O mobiliário é soífrivel; a bibliotheca, posto que pequena, muito escolhida: ali encontrei o Dictionnaire du mobilier fratiçais, de Violet-leDuc ; Encydofédic des BcauxArls plasliques, de Auguste Demmin; Grammaire des arts du dessein, de Charles Blanc, etc. Ha uma coUecção de bons modelos, entre clles alguns colhidos pelo sr. Henrique Pinto em motivos do convento de Christo. Depois visitei o atelier do illustre director, onde passei alguns momentos agradavel- mente, apreciando as suas telas de costumes portuguezcs. Eu disse que era histórica a casa da rua da Capella, onde está installada a Escola Industrial. 
Em duas palavras o demonstrarei. 
No tempo das invasões francezas, os thomarenses quizeram resistir, sem outra

defesa possível além do seu enthusiasmo patriótico. Intimados a renderem-se, obstina- ram-se; mas por fim, reconhecendo a inutilidade do sacrifício, declararam que só entre- gariam as armas a um portuguez. Foi logo indicado pelo povo António Florêncio de Abreu,, da casa da Capella, casado com uma senhora italiana, D. Angela Tamagnini. Esta dama, que sabia falar bem o francez, correu ao acampamento inimigo, contou o que se passava, quaes as condições impostas pelos cidadãos de Thomar. O general francez acceitou-as. As armas foram depositadas na casa da Capella, onde ainda hoje se conserva uma visivel memoria d'este facto: as grades das varandas são feitas de canos de espingardas. Vem aqui a ponto, no tocante a instrucção popular, dizer que a cidade vai ser dotada com o edifício de uma Escola Central, no sitio da Várzea Grande. O projecto é do sr. Adães Bermudes, architecto director das construcções escolares. 
A constnicção foi adjudicada por 7:244.000 réis ao sr. Manuel António Mourão, constructor thomarense. A frente do edifício mede 56 metros de compfj(nento e está dividida em cinco corpos, tendo três paviní£,ntos o corpo central. O primeiro d'estes corpos compõe- se de um amplo vestíbulo, um vestiário, secretaria, gabinetes e uma escada- que dá accesso para os arj dares su- periores, os qua^s estão divididos em sete compartimentos cada uníj^_ destinados a aposentos dos professores. Nos outros corpos serão installadas quatro aulas com capacidade para sessenta alumnos cada uma, recebendo luz em abundância por janellas de grandes dimensões. Parailela a estas aulas e peio lado posterior corre uma galeria geral, que servirá para recreio dos alumnos. D'esta galeria passa-se para os jardins e d'elles para um gymnasio coberto, que completa a construcção.
 Depois de estabelecida em Portugal a dynastia de Bragança tem a villa, agora ci- dade de Thomar, sido visitada por algumas personagens illustreé) taes como o archi- duque Carlos d'Austria (depois imperador da Allemanha com o i-iome de Carlos VI), , elrei D. Pedro II, elrei D. João V e seus irmãos os infantes D. António e D. Manuel ; rainha D. Maria II em 28 de outubro de 1843 e 4 de setembro de 1845, d'esta vez acompanhada por elrei D. Fernando II. 
Era então ministro do reino o notável estadista António Bernardo da Costa Cabral, que anteriormente havia arrematado a cerca do convento, o pateo do 1. Carrascos com a varanda da ala occidental do claustro dos Corvos, a casa da bibliotheoa, o corredor que lhe fica subjacente, o pavimento térreo na ala do sul e o corredor do meio. Esta compra foi uma das armas politicas, a que recorreram os adversários do enérgico ministro para combatel-o. 
N'um livro recentemente publicado pelo sr. dr. Vieira Guimarães — A Ordem de Christo— 1901 — , livro em que se faz detido e substancioso estudo jobre o convento de Thomar, d'z aquelle auctor « . . .era o convento de Christo do nume-ro dos bens na



cionaes, e esteve, como muitos outros, entregue a um inaudito vandalismo, emquanto esperava que qualquer argentario ou homem de fino gosto se lembrasse de dar por elle, n'esse medonho e contuso leilão de tantas preciosidades, precipitado pelo espectro da volta dos frades, alguns centos de mil reis em esfarrapadas notas do Banco. «Rico não era Costa Cabral ; mas, com as previdentes economias de sua trabalhosa vida, e sobre isso o seu aprimorado bom gosto, alcançou a venda da escalavrada cerca e de umas insignificantes dependências do opulento e grandioso convento, pela importante, ao tempo, quantia de 5:o4o.ooo réis». Convertidas estas dependências do convento de Christo em casa de habitação, foi n'ella que a rainha D. Maria II e elrei D. Fernando se hospedaram em setembro de 1845.Contase que a rainha, nos dias em que ali se demorou, ia sentar-se algumas horas na varanda da ala occidental do claustro dos Corvos a gosar o bello panorama que d'ali se disfructa, o horizonte amplo, a cidade alinhada ao sopé do monte do Castello dos Templários, as duas Varzeas limitando-a ao norte e ao sul, o Nabão sulcando luminosamente a planicie e a margem esquerda empastando os seus bastos olivedos n'uma grande mancha verde-negra. A essa varanda ficou-se chamando — da Rainha. Foi na segunda visita, em 1845, que a rainha agraciou o seu ministro do reino com o titulo de conde de Thomar em duas vidas. 1.
Se D. Maria I tinha prejudicado os interesses da villa de Thomar, como em ver- dade prejudicou, auctorisando o traçado da nova estrada de Liiboa ao Porto por Leiria, outra rainha, e do mesmo nome, honrou Thomar dando lhe a categoria de cidade, visi- tando-a duas vezes e agraciando o mais saliente estadista do seu reinado com aquelle titulo honorifico, de que ainda hoje usam o filho e o neto de António Bernardo da Costa Cabral. Este estadista mandou levantar uma pyramide em commemoração da visita e magnanimidade da rainha. Depois de D. Maria II só nos recordamos de mais duas visitas reaes á cidade de Thomar: a da senhora D. Amélia de Orleans, e seus augustos filhos, em 6 de abril de 1900; a da senhora D. Maria Pia de Saboya, com o sr. infante D. Afonso, em 9 de fevereiro de 1905. 
O convento de Christo foi classificado como monumento nacional de 1ª classe, cuja guarda está confiada a um conservador pago pelo Estado. Assim tem este notável edificio podido subsistir, reparadas as devastações do vandalismo (como as que fizeram os soldados francezes na terceira invasão) e as do tempo. Em 1845, a rainha viu muito bem a cidade: examinou, com interesse, todas as bellezas do convento; visitou a Real Fabrica de Fiação; deteve-se admirando a bella cascata formada pelo Nabão no açude que conduz a agua para esta Fabrica; entrou na igreja de Santa Maria dos Olivaes, e assistiu a um espectáculo no theatro. El rei D. Fernando desenhou alguns croquis do convento, entre os quaes o da janella da Casa do Capitulo. 
Quanto á cidade, ainda quero dizer ao leitor algo mais.
Existe hoje uma créche-asylo, que foi instituída em 15 de agosto de 1902 por iniciativa de D. Brites da Piedade. A festa mais brilhante que se faz em Thomar é a dos Taboleiros. Começa na sexta feira do Coração de Jesus e dura três dias. 

(1. O conde de Thomar foi promovido ao titulo de marqucz em 1 1 de julho de 1878. E faleceu a 1 de setembro de 1889.)

Será essa uma boa occasião para visitar a cidade, mas ao leitor convém não perder nunca de vista uma cautela : e é que, em Thomar, não se deve beber sen^o a agua dos Marmellaes. A outra não presta, e pode ser nociva. O mais seguro, porém, será substituir a agua pelo vinho. Falando dos vinhos de Thomar, Aguiar classifica-os em três typos: o da Serra, palhete, muito alcoólico, delgado, aromático e maduro; o de Santa Maria dos Olivaes, pouco aromático, encorpado, cheio de casca e retinto \ e o vinho de Payalvo, S. Silvestre, S. Miguel, Asseiceira, Alviobeira, Casaes e Sabacheira, que lembra o do campo de Santarém. E já que tocamos na questão de hygiene publica, tranquillise-se o leitor, porque


Thomar não é hoje uma cidade doentia, como o foi no tempo de Gil Vicente, que não a poupa em seus Autos, haja vista a referencia, no Templo d'Apollo, «ás febres de Thomar» e esta alusão no Triumpho do Inverno, quando menciona os malefícios do estilo:



Thomar tem actualmente uma canalisaçao tão perfeita quanto o permitte a posição topographica da cidade. As ruas são limpas. E os aterros, como o da Avenida Marquez de Thomar, substituíram vantaiosamente os lodos do Nabão.

Já que me referi a Gil Vicente, não quero deixar de dizer que no convento de Christo, e no anno de 1523, jogou elle, na presença de elrei D. João III, o mais arriscado lance da sua vida litteraria, uma cartada de que para sempre podia sahir derrotado ou triumphante. 
Dizia-se na corte, ou pelo menos da corte sahia a atoarda, que Gil Vicente não era o auctor dos Autos que dava como seus ; mas que de outrem os tomava. A solemne experiência fez-se em Thomar, perante o rei. Escolheram-lhe os fidalgos um assumpto —Mais quero asno que me leve, que cavallo que me derrube. Gil Vicente, muito seguro de si, acceitou logo o thema e rapidamente compôs a Farsa de 



Ignez Pereira, que o leitor já de certo viu representar modernamente no theatro de D. Maria, acommodada á actualidade por Marcellino Mesquita. Foi um triumpho bem ganho. 
O numero de maior interesse na festa dos Taboleiros é a procissão ou antes cortejo que sai da Misericórdia e é composto de cento e vinte e três raparigas, de 15 a 3o annos, vestidas de branco, muito ao garrido, porque um iris de fitas variegadas lhes matisa e realça a uniformidade do trajo. Levar um taboleiro na procissão do Espirito Santo é, para as raparigas thomarenses, a suprema honra e ambição, pois que o serem admittidas representa uma selecção lisonjeira sob o ponto de vista da formosura ou, pelo menos, da elegância. Cada taboleiro compõe-se de um cesto de verga, que tem espetadas á roda seis


canas de metro e meio de altura: todo o bojo do cesto é enroupado com toalhas de renda, e nas canas, revestidas de verdura e flores, são enfiados os pães, sete ou oito em cada uma. No alto uma coroa de flores ou de metal dourado liga entre si, como remate decorativo, as hastes que sobem do cesto. No cortejo não vai imagem alguma de santo ou santa, nem andor. Por isso nos parece melhor chamar-lhe cortejo que procissão. Apenas o que cheira a lithurgia é a bandeira do Espirito Santo, que rompe á frente, e também a presença do parocho. Este e dois mordomos, que o acompanham, conduzem em salvas de prata três



grandes coroas, d'esse mesmo metal, as quaes, segundo a tradição, representam o mysterio da Trindade. Continua-se o cortejo com a exhibição de seis bois, enfeitados de flores e laços, que no dia seguinte hão de ser mortos. Depois, a respeitável intervallo, começam a desfilar as raparigas com os «taboleiros», indo ao lado de cada uma d'ellas um rapaz para a ajudar a subir ou descer sua gloriosa carga. A's vezes, quasi sempre será, o adjuvante é o namorado preferido, o eleito do coração. Dos «taboleiros» se chama este cortejo ou procissão, porque, segundo parece, o pão seria a principio conduzido em taboleiros, que mais tarde foram substituídos pelos açafates, quando a imaginação dos thomarenses começou a querer dar maior gala e pompa ao cortejo.


Tanto os pães como a carne dos bois são distribuídos pelos pobres da cidade, e também pelas pessoas e famílias que concorreram, com donativos, para a festa. A nossa estampa representa uma das raparigas da «procissão dos taboleiros» com o seu galante fardo deposto em descanço no chão. Thomar tem sido berço de alguns homens illustres, taes como António de Castilho, lente da Universidade de Coimbra e desembargador da Casa da Supplicação, filho do famoso architecto João de Castilho; o arcebispo de Lisboa D. João Annes; e o abali- sado musico Braz Pereira Furtado, mestre da capella de D. João IV, Affonso VI e Pedro II; além de outros. Ultimamente dois filhos de Thomar prestaram relevante serviço á sua terra procu- rando tornal-a mais conhecida com a publicação de largas monographias em que se propuzeram estudai- a. Um d'elles, o sr. dr. Vieira Guimarães, deu ao prelo um volume de 373 paginas sob o titulo A ordem de Christo (1901). O outro, o sr. dr. João Maria de Sousa, estampou a Noticia descriptiva e histó- rica de Thomar (igoS), em que versa, durante 253 paginas, os mais importantes assumptos relativos áquella cidade. Ambos os auctores são médicos. Também, coUaborado pelos srs. Adães Bermudes e Vieira Guimarães, foi publi- cado, em agosto de 1898, um fascículo de 8 paginas sobre Thomar, i." numero do Álbum artístico de Portugal, que me parece não haver tido seguimento. Como subsídios mais antigos, indicarei ao leitor : Memoria sobre o convento da Ordem de Christo em Thomar, 1842; Monumentos das ordens militares do Templo de Thomar, por José António dos Santos Lisboa, 1879. Publicam-se actualmente na cidade dois periódicos semanaes, a saber : A Verdade, semanário democrático, que conta xxin annos de existência, e c im- presso na typographia Silva Magalhães, rua Direita da Várzea Pequena. Os proprietários d'este typographia, seja dito mais uma vez, possuem, junto ás suas officínas, um interessante museu em que, além de alguns valiosos objectos orientaes, ha outros colhidos na própria cidade de Thomar. O Thomarense, também semanário noticioso, que se publica ha 20 annos, e é im- presso na typographia da rua dos Moinhos, n.° 67. la-me esquecendo de uma pequena industria a que Ramalho Ortigão se refere no Culto da arte em Portugal: «no mercado de Thomar vende se em graciosos novellos da forma de casulos a melhor linha, branca ou preta, que se pôde comprar em Portugal». A cidade de Thomar é cabeça do concelho do seu nome (no districto de Santarém) e cabeça de comarca, de 1.* classe. O concelho tem 30:572 habitantes de ambos os sexos e comprehende i3 freguezias, sujeitas ao Patriarchado, das quaes a mais notável, pelo menos historicamente, é a Asseiceira. Quem de Thomar sai para Constância, itinerário que eu segui, encontra, 7 kiiometros ao sul da cidade, na ribeira do Nabão, o logar de Santa Sita, notável por vários titulos. A estrada offerece um lindo espectáculo de vegetação variada e opulenta, que pôde rivalisar sem receio com a da provinda do Minho. Ha, junto á povoação e igreja de Santa Sita, um espesso pinhal onde no ultimo dia de cada mez se faz mercado de gados, e a 10, 11 e 12 de setembro feira annual também de gados. Bastaria este motivo para tornar conhecido o logar de Santa Sita, mas accrescem razões de tradição religiosa a dar-lhe prestigio.


No anno 155 da éra christã soffreu morte affrontosa n'este logar a virtuosa Sita, cuja vida se relaciona com a de Santa Qaiteria e suas oito irmãs, pois que as salvou da morte a que a própria mãe as havia condemnado. Sita educou-as na fé christã, que fervorosamente seguia, apezar de servir como aia em casa de Lúcio Caio Attilio, magistrado bracarense durante o império romano. Um anjo aconselhou, porém, a dispersão das nove irmãs para irem missionando o christianismo entr^ os gentios da peninsula hispânica.


Sita imitou lhes o exemplo, e caminhou para o sul no empenho de diffundir a reli- gião do Divino Crucificado. Foi no cerrado bosque de pinheiros, d'esta região nabanti'na, que os sectários do paganismo a sacrificaram carniceiramente. No próprio sitio em que o corpo appareceu, edificaram os christãos uma capella, que depois um ermitão italiano restaurou, e que mais tarde foi transformada em igreja sendo construido á banda do poente, no alto de um monte, um convento de frades fran- ciscanos, hoje propriedade particular.


O terreno onde assenta a povoação e a igreja é declivoso, porque vai descendo para o Nabão, que passa perto e ao fundo. • Ha no logar algumas casas de venda, por causa dos mercados mensaes e da feira annual. A igreja é pequenina e antiga, e tem aipendrada. Pouco abaixo, seguindo o curso do Nabão e aproveitando-o, trabalha a fabrica de papel de Matrena, que foi construída no local onde antigamente houve o lagar e moinhos do mesmo nome. O sitio da fabrica é triste. Continuando a seguir a estrada de Constância, o cocheiro indica-nos, á direita, um



grupo de casas alvejando por entre o macisso dos pinhaes, que são abundantes n'esta região, e orientanos dizendo : — E' a Asseiceira. A antiga villa de Ceiceyra ou Assinceira, hoje Asseiceira (freguezia do seu nome) está situada n'um valle junto á falda de um monte. Tem por vizinhos dois rios : a meia légua, o Nabão \ a légua e meia, o Tejo. Fica nove kilometros a nordeste da estação do Entroncamento, na estrada real que vem de Thomar entroncar na de Abrantes a Torres Novas; e sete kilometros a sueste da estação de Payalvo. Dista de Thomar dez kilometros. E' tradição que D. Diniz lhe deu foral. 


(1. Com o nome de Santa Sita organisou-se em Thomar um .syndicato agrícola, fundado pelo sr. D. Luiz de Castro.)


Pinho Leal diz que D. Manuel lhe deu novo foral, e Baptista que Filippe II o re formou em 1591. 
A Memoria de Franklin apenas se refere ao foral de D. Manuel, que é do anno de 1514.
 Os condes da Atalaya foram senhores da villa. 
A freguezia, cujo orago é Nossa Senhora da Purificação, tem hoje 2.495 habitantes, sendo 1.192 do sexo masculino e 1.3o3 do feminino. Terra fértil, abundante em cereaes, fructas e azeite. Parece ser antiga n'esta villa a industria de chapeleiro. Próximo á povoação feriu-se em 16 de maio de 1834 a ultima batalha entre realis- tas e liberaes. 
Foi o duque da Terceira que fechou, n'esta acção, esse longo drama de luctas fra- tricidas.
 Elle próprio descreve assim a batalha no seu relatório official : «Chegando ao baixo da serie de alturas sobre a Asseiceira pude descobrir o inimigo em posição e formado nos cumes e vertentes das ditas alturas. Então comecei o ataque^ e formando três columnas das três brigadas d'este exercito fiz avançar pela direita a columna do coronel Queiroz; pelo centro a do brigadeiro João Nepomuceno, e pela es- querda a do tenentecoronel José de Vasconceilos. O inimigo favorecido pelas vantagens da sua posição e pelo fogo da sua artilharia, resistiu teimosamente, e sustentou por muito tempo as sinuosidades do terreno que occupava, empregando em todas as circumstancias favoráveis a sua cavallaria, que a nossa infantaria das columnas do centro e direita repelliu sempre com a maior galhardia, formando-se com a promptidão e conservando a segurança e firmeza a que essa arma deve a sua superioridade. Finalmente, a despeito de todas as dificuldades, e resistência, as alturas foram tomadas, e o inimigo posto na mais completa debandada e perseguido por tal forma que a sua fuga decidida teve logar em todas as direcções sobre as estradas de Punhete, da Barquinha, de Torres, da Gollegã e por todos os montes e valles intermédios.» A respeito da batalha da Asseiceira, Pinho Leal não occulta o tremendo desastre dos miguelistas. Escreve dizendo: «Os realistas, depois de uma brilhante investida, abandonaram o campo em desordem, por má direcção dos chefes». N'estas poucas linhas ha, comtudo, duas inexactidões. Gomo se viu do relatório, não foram os miguelistas que investiram ; os liberaes é que atacaram. Mas o próprio duque da Terceira confessa que o exercito de D. Miguel resistiu tei- mosamente, isto é, que se defendeu bem, com bravura. Até aqui não encontramos «o erro dos chefes.» A posição dos realistas era vantajosa: não houve, portanto, erro em tomal-a. A sua cavallaria foi empregada «em todas as circumstancias favoráveis», como diz o duque da Terceira. Também não está aqui o «erro». Onde estará então? , Só se foi em perderem a batalha. Mas perder ou ganhar uma batalha é, em grande parte, um lance da sorte, e o que perde, se soube baterse, não é culpado no desastre. Nas graves doenças, os médicos assistentes, por maiores esforços que empreguem para salvar o enfermo, são sempre accusados de o terem deixado morrer. O mesmo acontece com o general que perde uma batalha, ainda quando soube tomar

uma posição vantajosa, resistir á investida do adversário, e defender «teimosamente» o terreno. E' preciso notar que o exercito de D. Miguel tinha perdido em Almoster a sua força moral. Isso sim, isso é verdade : e este factor não deve ter sido de pouca monta na derrota e debandada da Asseiceira. O que é certo é que aqui, n este valle, o exercito miguelista se dispersou em farrapos ensanguentados. Mais tarde ainda appareceram guerrilhas, no sul.


Mas o exercito nunca mais renasceu. A causa de D. Miguel ficou perdida em Asseiceira. No dia 23 suspendiam se as hostilidades, no dia 27 era assignada a convenção de Evora-Monte, e quatro dias depois o príncipe vencido embarcava em Sines para o exilio. Notarei, com referencia ao concelho de Thoniar, a circumstancia de comprehender, alem da treguezia da Asseiceira, mais quatro com a mesma desinência, a saber: Alviobeira, Beberriqueira, Junceira e Sabacheira. A respeito da imprensa periódica nabantina, devo ainda dizer que na cabeça do concelho houve em 1879 um semanário democrático intitulado A Emancipação^ e em 1886 outro denominado O Combate. Este ultimo apenas durou de outubro a dezembro d'aquelle anno. E como a nossa «victoria» vai rodando ligeira para Constância, digamos um saudoso adeus ao manso rio Nabão, que bem merecia ser chrismado com mais poético nome, e que dentro de pouco tempo será substituído, ante os nossos olhos, pelo Zêzere, que o absorve.


As quatro pequenas cidades da Extremadura — Santarém, Thomar, Leiria e Setúbal — que são como outros tantos satellytes da cidade principal, Lisboa, ao mesmo passo capital da província e do reino — possuem um gracioso caracter pittoresco, tão accentuado, que em nenhuma é igual ao das outras, e em todas prende a attenção do viajante. Esta cidadesinha de Thomar, que ainda ha pouco deixámos, com o seu rio luzente, o seu castello histórico, as suas igrejas famosas, as suas pedras antigas, as suas fabricas modernas e a lenda da sua Iria santa, deixa-nos uma grata lembrança, não tanto em alto relevo como a que trouxemos de Santarém, mas certamente não menos duradoira e saudosa. Parece-nos que levamos ainda no ouvido o som longínquo dos sinos da remota Nabancia n'um dia de festa, e que esse mesmo som o ouvimos repercutido longamente no valle ameno por onde o Nabão descreve seu curso. Então nos tornam a acudir á memoria os versos da chácara de Castilho :

Tocam sinos em Nabancia,
 Tocam sinos á porfia.

E uma suavidade caridosa nos amacia o espirito n'um deleite de recordar lindas terras portuguezas, que vimos durante algumas horas e que fizeram variar o curso habitual da nossa vida, ás vezes aborrecido e áspero.







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